27.4.08

China

Canto. Som. Vermelho.
Os dias que vivemos na China ultrapassam o tamanho das palavras. Não há recantos descobertos dentro do meu ser que abranjam o tamanho de uma descrição. Devolvo-me às palavras soltas, ao abrir e fechar de olhos. Como um filme de imagens recortadas ao acaso, sem ordem, sem preparação. Cru. Só com a força dos pedaços soltos que acontecem.
Dragão. Fogo. Luz.
No meio de uma multidão que não nos esmagava. A viver a experiencia do lado contrário. Milhares de máquinas fotográficas paradas no espanto. Porque éramos nós a diferença. Queriam guardar-nos num retrato. O Dragão dançava o conhecido, a música e a festa cantavam felicidades repetidas. Nós. Nós tínhamos pêlos e olhos redondos, éramos altos como saídos de um filme. Abraços e sorrisos envolviam-nos com cuidado para não nos transformarmos num nada. Uma espiral de emoções apagava a necessidade de falarmos a mesma lingua. Éramos apenas aquele momento diluído de surpresa.
Toque. Cheiro. Passagem.
Pelo meio de ruas cobertas de pessoas, passos e fumo. A noção da individualidade perde-se no íntimo de cada um. Não há espaço livre, não há um cheiro conhecido, não há um sinal que os nossos olhos reconheçam. Deixamo-nos seguir pelo meio. Uma discussão sobe o tom de um canto, imaginamos facas e sangue, choros e corpos deitados ao chão. Esperamos o pior… Despedem-se com gargalhadas curvas e barrigas cheias de riso. Não temos tempo para nos sentir perdidos. No instante em que julgávamos a nossa interpretação alguém nos dava algo para a mão. Comida ou objecto? Experimentamos ou guardamos no bolso? À nossa frente um homem mínimo esperava a acção. Comemos. O sabor doce do desconhecido junta-se ao sorriso do vendedor. O que seria?
Medo. Curiosidade. Voz.
Numa estação de comboios onde as pessoas esperam por um dia que não sabem se será o seguinte. Juntas, apagadas pelo frio e por uma solidão profunda que se prolonga até aos nossos olhos sem uma palavra. Transformam as nossas cores num cinzento-escuro que nos atravessa o corpo e nos corta pedaços. À medida que passamos ficam espalhados pelo chão. O mesmo onde se sentam e dormem e esperam. Entrámos no comboio vazios de nós.
- O que é isso? – um estudante do quarto ano da Universidade, companheiro da longa viagem.
- Um saco-cama.
- Estou confuso… para que serve?
Como se explica o conforto, a suavidade?
Caos. E novidade sem fim.
Atravessar uma estrada, entrar num autocarro, perguntar onde estamos, saber o que comemos. Gestos simples são elevados à incompreensão. E nós, caídos num mundo novo e sem preparação, descobrimos vozes que estão para além da palavra. Aprendemos uma nova linguagem. A da existência.
C.
(publicado no Miniscente no dia 10 de Março)

10 comentários:

Anónimo disse...

Através das tuas palavras, imagino, relembro e revivo essa estranha sensação da diferença, da incompreensão mas, ao mesmo tempo, uma grande experiência, inesquecível, muito diferente de tudo.
Beijinhos grandes do tamanho do mundo para os dois

Nélinha disse...

Que bom! Aceder ao blog e - surpresa - nova actualização! Mais fotos que valem por mil palavras, passe o cliché! E eis que as paredes se diluem e estou num mundo novo,os odores tornam-se estranhamente familiares, as cores inundam o espaço e mergulho num mar de gente cujo linguajar inintelígivel se transforma numa delirante música de fundo!Eu receava que as fotos da China se tivessem "evaporado" e elas aí estão, testemunho dum mundo tão diferente e tão igual!Obrigada por esta "boleia".
Beijinhos!

alf disse...

Ao ler-te lembrei-me do "romance" que reescrevemos... com uma grande diferença, o caminho não é uma estrada vazia e monótona mas cheio e vibrante. Em comum talvez essa incógnita de saber o que pode surgir pela frente - pressinto na tua escrita o temor latente de um horror escondido algures. Mas não temas.. afinal, estás apenas como quando saiste do útero e entraste neste mundo onde tudo era então desconhecido. Afinal estás a ... viver de novo a experiência de nascer!

Gracie disse...

Grande foto;D

lupuscanissignatus disse...

descobrir

descobrindo-se

deixando

descobrir-se




belas palavras e foto

Voyager disse...

Conheci este blogue hoje, estou viciadão a ler todos os posts... =P

Parabéns pelo site! Viajar é o melhor estilo de vida possível =)

PS: Linkei-vos no meu blogue. Espero que não se importem.

Anónimo disse...

Fabolespantástica? Ainda não foi desta que foi inventada uma palavra para descrever a vossa viagem.
Também eu viajo ao ver o blog e, como se já fosse pouco, a curiosidade pede mais.
Mesmo longe vocês estão perto e jamais esquecerei da surpresa que me fizeram na véspera do meu casamento... Brutal!
Um abraço do outro lado do mundo.

Namaste,

MaTiAs

Jorge Castro (OrCa) disse...

Belíssimo naco de prosa. Caramba, até eu dei por mim fora daqui!

Que os vossos passos recriem caminhos.

Abraços.

Anónimo disse...

Mano continuo a vir ao vosso blog com o mesmo entusiasmo, as saudades apertam e é sempre bom ver as vossas caras (bem... a da clara porque tu não estás mais bonito desde a ultima vez que te vi).
Foi bom ouvir a voz da clara na TSF para matar saudades.
Já agora quando vierem podem ficar em nossa casa, com vista para a várzea ??????????????? NOVIDADES...só quando chegarem

Joca

maria barreiros disse...

Verdadeiramente Fantástico!
O tudo e nada juntam-se...como o tão pouco pode ser imenso....
Obrigada por me fazerem viajar...
Um granbe Beijo
Mili