25.4.08

Os Homens de Terracota de Xi’an


De repente ali estavam eles. Centenas, milhares, num número que me surpreende e para qual não estou preparado. Estão mesmo à minha frente e à minha volta, cobertos de pó, todos iguais, todos diferentes, da cor da terra que os criou. Estavam todos juntos mas sempre sós, imóveis, num silêncio absurdo, difícil de descrever. Olho-os nos olhos e sinto-lhes o olhar em alvo, perco-me na multidão e não encontro a individualidade. Muitos estão partidos, muito partidos, incompletos, desalinhados ou simplesmente caídos. Têm as marcas do tempo e da erosão. São os últimos a aparecer, ficaram para trás, ficaram esquecidos.

Os guerreiros de terracota de Xi’an não me impressionaram verdadeiramente. Não consigo compreender o facto de se continuarem a apregoar como maravilhas da humanidade, obras megalómanas de pura ostentação, cujo único propósito é servir os desejos de grandeza de meia dúzia de déspotas, sem qualquer outro objectivo social, cultural, económico ou até mesmo militar. Construções faraónicas idealizadas por tiranos com egos erguidos à custa da exploração dos seus semelhantes e com total desprezo e desrespeito pelas assimetrias e injustiças. Loucos ou pobres de espírito perseguindo uma ilusão infantil que assim podem comprar a sua imortalidade e importância na História.

Os Palácios do vale do Loire ou do Dubai, os guerreiros do Imperador Qin Shi Huang em Xi’an ou de Bush em Bagdad, as estátuas gigantes dos “grandes líderes” ou os casinos de 100 andares, não passam de grandes demonstrações de poder e ostentação. Não têm qualquer outra razão que justifique a sua existência. São o património de muito poucos e nunca da Humanidade.

O nosso verdadeiro património da Humanidade está nas coisas mais simples. Numa onda como Ribeira da Janela na Madeira, em toda a costa Portuguesa, no rio Paiva, no glaciar Perito Moreno, nas cataratas do Iguaçu, na Grande Barreira de Coral, nos Himalaias, na Amazónia. E, acima de tudo nas Pessoas, em todos nós, em todo Mundo.

De repente ali estavam eles. Centenas, milhares, num número que me surpreende e para qual não estou preparado. São os Homens da Estação de Xi’an. Encurralados pela maior tempestade de neve dos últimos 100 anos na China, esperam há dias por um lugar em pé num comboio que os levará de volta às suas terras numa viagem de trinta ou mais horas. Carregam consigo os seus filhos e sacos inimagináveis de sementes, ração e cereais. Esperam, num silêncio absurdo olham em alvo, esperam, enganam a fome, esperam, aliviam-se, esperam, dormem ao relento sobre o chão gelado, esperam.
Tenho dezenas de fotografias dos guerreiros de terracota. A estes Homens e às suas famílias não consegui tirar nenhuma. Tenho por eles o maior respeito. Acompanho-os na minha memória. A última vez que olhei para trás continuavam à espera. De um comboio. De uma vida melhor.

Miguel Sacramento

12 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo teu texto Miguel. Mais uma vez, obrigada pelas vossas descrições tão reais. Através das vossas fotografias, das vossas palavras, imagino o que nunca pensei.
Muitos beijinhos para os dois. Tenho muitas saudades mas, ao mesmo tempo, um orgulho imenso em vocês :)

Anónimo disse...

Tenho viajado pelo mundo através deste e doutros excelentes blogs. Por acaso descobri o site www.crazyportuguese.com e acho que vou embarcar naquela aventura. Será um primeiro passo... Obrigado pela inspiração e coragem que já me deram.

Anónimo disse...

Miguel
Fiquei surpreendida, não sabia que escrevias tão bem.
Adorei...
Eu a pensar que só a minha menina (não sei se sabes quem ela é...) é escrevia maravilhosamente...Parabens e muuuuiitos beijinhos

Anónimo disse...

Gostei muito do teu texto. Aliás tenho gostado sempre, desde os simples "posts" aos textos mais elaborados.
Fico orgulhosa! Fico sem palavras!
Beijos mil
Clara mãe

Nélinha disse...

Uma mensagem perfeita para o dia em que se comemora a Revolução de 25 de Abril. Esperemos que também os "Homens-Estátua" da Estação de Xi'an possam um dia vir a ter a sua Revolução dos Cravos!
Bjs

Anónimo disse...

Vi logo que o texto era teu, Miguel,mesmo antes de ver a assinatura.Tens uma maneira muito peculiar de escrever e de mostrar os teus sentimentos.Gosto muito e cá fico à espera de mais.
Beijos cheios de afecto

Gracie disse...

Olha, axo que tenho saudades tuas :D
Beijos

niaodian disse...

Amazing:-0

Sound and Fury, signifying nothing disse...

"Os homens da Estação de Xi'an". Mais uma história (quem me dera que tão ficcionada quanto as histórias mais assustadoras que ouvia em criança) a fazer parte do vosso Património da Humanidade, aquele com que nos brindam a cada post, a cada fotografia, a cada palavra. E no meio de tanta novidade, de tantas histórias tão longínquas e ao mesmo tempo tão perto de mim, há sempre uma que me surpreende mais, que se eleva e arrepia a minha imaginação. No meio de tamanha diferença, a epifânia. Descobrir sempre mais e mais diferente, mas por isso guardado ainda mais fundo dentro do coração e da memória emprestada.

E se habitualmente são fotografias tuas e palavras da Clarinha que me causam estas epifânias, agora o texto foi teu. E que texto.

Obrigada. Beijinho grande

Prima Ana

Sound and Fury, signifying nothing disse...

baaaah eu escrevi epifÂnia!!!! Não acredito, c'est pas possible. É de escrever demasiadas vezes "momento epifânico", falhou-me a mão e fugiu imediatamente para o acento. Peço desculpa a todos os que eu possa ter ferido, especialmente à Clara.

Beijinhos e que tenham todos uma EPIFANIA a ler este comment.

GoVeRi disse...

com textos destes arriscas-te a ser apelidado de perigoso anarca e anti-materialista... algo não muito popular nos dias que correm

mas estou contigo e aproveitava para meter dentro do mesmo "saco" catedrais, mesquitas, igrejas... e o Muro das Lamentações, já agora...

;)

goiaba disse...

Gostei muito do texto e sobretudo da opinião sobre as maravilhas megalómonas que podem inscrever-se no Guiness do mundo moderno. Continuo a vossa viagem. Obrigada